Um monstro chamado Clarice (Parte Dois - Final)
A
morte de George estava ao lado de minha cama. Foi assim que passei a chamar,
por dias a fio, a revista que George me dera. Até que, certo dia, tirei-a do
envelope para ler. Era uma revista em quadrinhos de um super-herói do qual
nunca tinha ouvido falar. Na capa, havia escrito à caneta numa letra pouco
legível: “Para Clarice, que possui muitas semelhanças com meu mais novo
favorito super-herói: inteligente, paciente e generosa, mas quando é tomada por
raiva, vira um enorme monstro. Pena que não fica verde”.
Abri
a revista e comecei a folheá-la, página por página. George tinha razão sobre minha personalidade,
de fato às vezes eu virava um monstro. A história dos quadrinhos realmente era
boa. Eu a lia com muito gosto e me envolvia cada vez mais. Deveria ser tarde da
noite e, sem perceber, acabei por adormecer.
De
repente, eu estava em outro lugar. Era uma cidade muito movimentada, por sinal,
onde havia pessoas correndo para todo o lado. Havia gritos de terror, muito
pânico na face de cada pessoa. Havia também, a poucos metros de distância de
onde eu me encontrava, um enorme prédio de aproximadamente trinta e cinco
andares completamente tomado por chamas. Então eu percebi que toda a agitação
fora iniciada ali. As cenas eram terríveis e as pessoas, sem saber o que fazer,
atiravam-se de uma altura incalculável. Eu desejei que todo aquele terror não
fosse real, mas tudo estava a minha frente.
Eu
já estava perdida e completamente enlouquecida. Decidi correr, mas não para
longe daquele local, pelo contrário, decidi correr para aquele local. Em
segundos eu alcançava uns dez metros e estava pegando as pessoas daquele prédio
com apenas minha mão. Eu estava salvando o mundo.
De
repente, fui tomada por um barulho ensurdecedor. Foi quando percebi que era meu
despertador e já era hora de acordar.
_Bom
dia, minha filha. – Dizia minha mãe.
_Bom
dia, mamãe.
_Dormiu
bem?
_Mãe,
essa noite eu salvei o mundo!
Nessa
hora, foi impossível minha mãe conter o riso.
_Você
não acha que já está grandinha para contos de fadas? – Disse minha mãe.
Pois
é, talvez eu realmente não tivesse mais cinco anos. Mas qual o problema, por
acaso existe idade para sonhar?
O
dia seguiu normalmente, mas aquele sonho não parava de me rodear. As cenas eram
tão reais. Tudo era tão real. Será que eram apenas sonhos?
A
noite caiu rapidamente. Terminei o jantar e fui diretamente para meu quarto.
Deitei em minha cama e fiquei admirando as estrelas, por meio da minha janela
bem ao lado. Não resisti e precisei pegar a revista em quadrinhos novamente.
Comecei a reler. A história narrava a vida de um cientista, dotado de uma
inteligência absurda, que acidentalmente foi atingido por raios gama e, ao
invés de morrer, ele se transformou em um enorme monstro verde, que vinha à
tona toda vez que a raiva o dominava. Embora o monstro verde fosse muitas vezes
considerado uma ameaça à sociedade, salvara muitas vezes as pessoas e o mundo. Eu
nunca havia lido alguma história de super-heróis, mas era completamente
apaixonada pela ficção. Na maioria das vezes, meus pais, ou qualquer outra pessoa
que estivesse ao meu redor, precisava me chamar a atenção para eu voltar ao
mundo real. Eu passava muito tempo em meus devaneios, sonhando.
Agora,
eu estava em lugar frio, muito frio. Havia gelo e muita neve. As pessoas
estavam andando na rua calmamente. De súbito, começaram a correr sem parar. O
terror voltara novamente.
_Não,
por favor! Vá embora! – Gritavam em algum lugar da rua.
_Ahhhhh,
socorro!
Eu
não conseguia entender o que estava acontecendo. Continuei andando, com medo.
Mas o estranho é que eu não conseguia ver nem ouvir nada, além dos gritos
apavoradores das pessoas ao meu redor. Atrás de mim não havia nada. O tumulto
começava na minha frente. Enquanto eu andava pela rua procurando a origem de
todo o pavor, me dei de cara com um enorme monstro. Ele era verde e grande. Eu
me assustei tanto quanto as outras pessoas. Eu tremia tanto que não conseguia
pensar em absolutamente nada a não ser correr. Às vezes é mais fácil termos
medo do desconhecido, pois quando o problema realmente vem à tona, não sabemos
o que fazer com ele. Este era meu caso.
Eu
acordei trêmula. Agora eu estava em meu quarto olhando para o teto. O sonho me
dominara, pois tudo parecia tão real. Eu me questionava incessantemente, por
que na noite anterior eu salvara o mundo e agora eu apenas corria do medo?
Minha
cabeça fervilhava de pensamentos inquietantes. Eu acabei por adormecer.
No
dia seguinte, acordei cedo e fui para a escola. Nesse dia, fazia um mês que
George se fora. Foi difícil lembrar e mais difícil ainda aceitar que tudo era
verdade. Quando eu já estava a caminho de casa, encontrei Catarina, uma amiga
de infância.
_Catarina,
você acredita nos nossos sonhos? – Questionei-a.
_Depende.
Você se refere aos sonhos que idealizamos para nosso futuro ou os que criamos
em nossa mente quando dormimos? – Respondeu-me.
_Nos
nossos sonhos quando dormimos. Como se fossem contos de fadas.
_Eu
não acredito em contos de fadas. Acho que eles são fantasias inventadas para
contar às crianças idealizando um mundo bom e de todos, onde tudo é belo e
perfeito. Quando crescemos, percebemos que os príncipes e as princesas nos
abandonaram ou nunca saíram das páginas de um livro infantil.
_Catarina,
eu tenho sonhado com super-heróis e monstros. O problema é que tudo é tão real.
Às vezes, parece que é algum tipo de aviso ou sei lá. É tudo muito estranho.
_Calma,
Clarice. Mesmo quando sonhamos ou imaginamos algo além do óbvio, não quer dizer
que não é real. Os sonhos são parte de nós. Talvez eles sejam fatos reais,
apenas representados de outra forma. Tudo é mais fácil de entender quando está
fantasiado. É mais doce.
Talvez
Catarina tenha razão, mas vai saber. Eu já estava chegando em casa e o sol
estava se pondo. É tão lindo o céu a essa hora. A pintura mais bela. Ainda bem
que há belezas fora de nossos sonhos.
A
noite caíra depressa e eu já me encontrava em meu quarto. Havia uma foto ao
lado da cama. Era do ano de mil novecentos e sessenta e cinco, onde ao fundo
havia um bosque muito lindo e a frente havia meus colegas de classe, inclusive
George. Essa foto me fez pensar nele e na injustiça que é a vida. Eu não
gostava de chorar. Talvez isso fosse uma das coisas que eu mais odiasse na
vida. Mas ali, naquele momento, foi inevitável. A vida nos tira pessoas tão
belas. Ele sempre foi uma pessoa positiva que me fazia rir. Ele era tão cheio
de si, com um brilho único. No seu olhar havia uma luz tão rara de esperança.
Talvez exista uma luz que nunca se apague. Nessa noite adormeci triste. Havia
um peso em meu coração, não sei bem o porquê.
Agora
eu me encontrava no mesmo local da noite anterior. A cena era exatamente a
mesma. Eu continuava a correr para longe do monstro. Foi quando, de súbito,
percebi que o monstro na verdade era eu. O que eu havia visto na noite anterior
era meu reflexo em um grande prédio. Eu fiquei perplexa e, com todas minhas
forças, tentei acordar. Mas parece que hoje não era um sonho. Eu gritava, mas os
gritos saíam pela boca do monstro esverdeado. Como eu poderia ser o monstro?
Por que eu era o monstro? Eu jamais machuquei alguém, por que logo agora estava
vestindo essa máscara?
Eu
simplesmente sentei-me no chão e me pus a chorar. Todo mundo que há um segundo
corria de pânico, agora centrara seus olhos em mim. Além de eu ser
ridiculamente grande, era assustadora e, para o maior espanto de todos, eu
chorava. Em frente a todo mundo, ofereci meu pranto.
Eu
acordei, mais uma vez. Durante toda a minha vida eu nunca mais sonhei algo do
tipo. Foram noites confusas que permitiram que eu me encontrasse. Mas isso só
aconteceu quarenta e sete anos após o ocorrido. Sim, é muito tempo.
Hoje,
eu tenho sessenta e três invernos. Nessa madrugada fria de terça-feira voltei
ao passado. Quando acordei, imaginei que seria igual a todas as vezes que
desperto há essa hora. Mas não foi. Depois daquelas noites seguidas por sonhos
estranhos, nunca mais havia me questionado. Hoje, já não faço questão de
escondê-lo de ninguém, pois agora eu sei porque eu fui o monstro da história.
Eu
nunca fui uma menina frágil, sempre lutei e ganhei com honra todas as minhas
lutas. Com a perda de George e de tantas outras pessoas queridas, aprendi que a
vida não é injusta como eu achava há quarenta e sete anos. A vida apenas faz o
seu trabalho. George tinha razão, às vezes eu virava um monstro, mas não era
por raiva. Em meio a todas minhas
desilusões, construí uma armadura para esconder meus sentimentos. Ela era
enorme, dotada de uma linda cor verde. Eu me vestia de monstro para ser forte.
Na verdade, todo mundo cria em si uma armadura
para se esconder.
num é por nada não, mas no calor que eu estou sentindo eu vi o tamanho do conto e morri de preguiça de ler ç.ç.... mas depois volto aqui e leio =)
ResponderExcluirblog fofo e bem organizado, seguindo baby =)
http://www.misturasdafabi.blogspot.com.br/
Obrigado, seguindo você também (:
ExcluirSou a favor de mais um desses, já é a terceira vez que leio. E sério, quando eu digo que tu escreve super bem, juro, não é exagero. Beijos.
ResponderExcluirAwn minha flor, obrigado <333333333
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